Rei do Baião a Seu Luiz

Entre Exu, Crato e Juazeiro, amigos e familiares partilham episódios vividos com o saudoso Seu Luiz
Quando um sujeito se despede da vida, quem dará testemunho dele? Quem são aqueles que saberão dizer quem foi, como agia ou o que dizia? Após a morte, um dos maiores patrimônios que se deixa é imaterial, porém transferível: a memória, as lembranças de episódios que vão, aos poucos, alinhavando uma imagem de nós mesmos para a posteridade.

Jota Farias, de Juazeiro. Foto: Viviane Pinheiro

Na vida do sanfoneiro Luiz Gonzaga do Nascimento (1912 - 1989), o Rei do Baião, o adágio popular "Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és" parece ter cabimento. Entre depoimentos de parceiros musicais e fraternos descobre-se não um mito distante, mas um Seu Luiz, assim aproximado. Um homem de sucesso, mas que tentava com custo conciliar o povoado natal e o Rio de Janeiro escolhido para viver e trabalhar. Um apaixonado pelos palcos, mas com pouco talento para os negócios e a vida amorosa.
Do pai, herdou a brincadeira, a ironia; da vida, uma instabilidade emocional confirmada por todos. O sanfoneiro Joquinha Gonzaga, o sobrinho que seguiu carreira artística, sintetizou bem: "No dia em que ele estava com a testa engelhada, passasse longe. Mas se ele acordava chamando você pelo nome, brincando, podia até ir lá pedir um aumento".

Meu Pé de Serra
Quando Gonzaga deixou a casa dos pais, aos 18 anos (ameaçado de morte pela família de sua primeira paixão da adolescência, Nazarena), Pai Januário e Mãe Santana ainda viviam no povoado do Araripe, a 12km do centro de Exu, em Pernambuco. A primeira casinha onde nasceu e se criou não resistiu ao tempo. É lembrada, hoje, por um marco.

A poucos metros dali, a casa na qual Gonzaga voltou a rever os pais ainda resiste. Isso aconteceu em 1946, por insistência de Santana. Desde o feliz retorno do filho dado como morto, o Rei do Baião passou a frequentar o povoado, sobretudo em datas festivas: aniversários e celebrações religiosas. Aproximou-se, desse modo, não só do sertão pernambucano, mas do tão amado Cariri cearense, retornando ao seio da família. Levou e trouxe familiares do sertão ao Rio.

No Araripe, ainda residem as irmãs Marfisa e Amparo Alencar, descendentes do Barão de Exu, atualmente responsáveis pela preservação da casa de Januário; e primos de Gonzagão, como o agricultor Antônio de Sousa, de 72 anos, primo de 2º grau, e sua filha, Keila de Sousa, de 43 anos.

A prima Keila de Sousa, no marco de nascimento de Gonzaga, em Exu. Foto: Viviane Pinheiro

As recordações de Keila se reportam à importância que Gonzaga tinha para o sustento da comunidade. "Seu Luiz ajudou muito as pessoas do Araripe. Ele fazia show beneficente, arrecadava cesta básica pra doar aqui, nos tempos de seca. Disso, eu lembro muito. Ele nunca esqueceu suas raízes e sempre voltou com algo melhor. Numa seca dessas, com certeza, ele estaria andando por aqui, ajudando como pudesse", afirma.

Na infância da prima, Luiz já possuía fazendas em Exu e começava a construir o Parque Aza Branca, onde atualmente se situa o Museu do Gonzagão. Keila nasceu um ano depois da histórica festa do centenário do Araripe, em 1968. Dessa, seu Antônio, pai de Keila, lembra bem: "Se a gente diz assim é capaz de ninguém acreditar, mas foi mesmo festa grande, 18 dias de forró. Luiz tocou nesses dias todos e a gente não perdia um!", disse, animado. "Vamos ver essa festa aí agora, do centenário dele, mas acho difícil ter uma maior do que aquela", completou.

Através do nome de Gonzaga, a comunidade virou ponto turístico, conquistou energia elétrica e, em ocasião do centenário, água encanada.

Cratense
Na tradicional Feira do Crato, cidade a 567 km de Fortaleza, vê-se ainda muitos possíveis Gonzagas. Tipos matutos, brincalhões, de jeito simples e pele queimada de sol. A feira, quando ainda acontecia da Rua Senador Pompeu até a Praça São Vicente, era um dos principais pontos de passagem de seu Luiz. "Ele chegava aqui com aquele jeitão dele, o chapeuzinho no meio da testa, e perguntava: ´Ô, seu Francisco, a quanto é a goma?´ Aí eu dizia: ´É 10 tons.´ E ele: ´Apois bote aí 10 quilo´. Era muito simpático, só comprava farinha assim, de 10 quilo pra cima, gostava de comida da terra", recorda Francisco Benício de Oliveira, 72 anos de idade e 45 de feira.

Os municípios de Crato e Juazeiro, no Cariri cearense, eram verdadeiras segunda e terceira moradas para Luiz Gonzaga. Dizia ele que, aliás, era "uma banda pernambucano, outra banda, cearense". Em meados da década de 1940, Gonzaga animou leilões da Festa de São Francisco, em favor da construção da Igreja e do Hospital que também levavam o nome do santo. Desde então, passou a hospedar-se em casa de seu Manelito Parente. "Quando meu pai faleceu, em 1974, Luiz disse assim: ´Hildelito, meu filho, em casa de viúva não dá pra homem se hospedar, não. Agora eu vou ficar é na sua casa!´", relembra o aposentado Hildelito Parente, também amante da sanfona.

Gonzaga chegava geralmente pela madrugada, depois dos shows, com seus músicos e convidados, como Marinês e Dominguinhos. Anunciava-se com um "Hôôi!", o chamamento com jeito de aboio de vaqueiro. Hildelito abria as portas e, enquanto preparava a dormida dos convidados, Luiz sentava ao sofá e puxava o acordeom para mostrar as músicas mais recentes e conversar com o anfitrião e sua esposa, dona Fátima.

Hildelito Parente, no Crato Fotos: Viviane Pinheiro
No café da manhã, tomava apenas café preto e pão. "Uma vez, amanheceu perguntando: ´Tem pão?´ e Fátima disse: ´seu Luiz, a menina foi ali comprar, espere só um pouquinho´. E ele repetia, como se ela não tivesse dito nada: ´Tem pão?´ E ela: ´Ouxe, seu Luiz, é só um minutinho, chega já!´. E vendo que já tinha enfezado a anfitriã, arrematava: ´Tem... pão bonito esse, né?´", conta Parente, entre risos.

Sanfoneiro e compositor, apesar de ter seguido a carreira de funcionário público, Parente chegou a compor duas músicas para Gonzagão: "Bandinha de Fé", do álbum "Capim Novo" (1976), e "Eu sou do Banco", gravada no disco "Eu e meu Pai", de 1979.

Padrinho
Se em Araripe residia um Gonzaga família e no Crato um Gonzaga fraterno, a Juazeiro o músico dedicou sua porção religiosa. Adotou Padre Cícero Romão por padrinho e gravou cerca de uma dezena de músicas em sua homenagem, entre elas: "Viva Meu Padim", "Juazeiro a Crato", "Nordeste Sangrento", "Cheia de 24", "Légua Tirana", "Xote dos Cabeludos" e "Beata Mocinha". Esta última, segundo o sanfoneiro juazeirense Jota Farias, 59, foi o primeiro bendito a Padre Cícero a ser gravado.

"Os pais de Gonzaga eram analfabetos, mas muito religiosos. Ele mesmo dizia: ´Não sei como Mãe Santana debulhava os terço em latim, tirava as novena!´. Até o nome dele, Luiz, foi uma homenagem a Santa Luzia", explica Farias.

Quando conheceu Gonzaga, Jota já seguia a carreira artística. Manuel do Exu, um amigo, o apresentou ao Rei do Baião. Gonzaga estava de saída, "avexado" como se diz, mas houve tempo tirar uma brincadeira.

"Jota Faria? E porque não faz?", disse Gonzagão. Chegaram a acertar uma participação no disco de Jota, mas Luiz adoeceu e faleceu. Em seu velório, lá estava o cantor aguardando a chegada do avião.

Apesar do atraso de quatro horas, uma multidão esperava no aeroporto de Juazeiro. "Gonzagão pediu que seu corpo passasse por Juazeiro para ser abençoado pelo Padim. Mas quando o avião chegou, Gonzaguinha não queria deixar que se fizesse uma cerimônia. A multidão era tão grande que o corpo de bombeiros precisou isolar a área. Foi quase uma hora Monsenhor Murilo tentando negociar com Gonzaguinha, até que ele deixou", revela Farias. O que era para ser uma passagem rápida se tornou uma cerimônia demorada, com violeiros, sanfoneiros e cantadores.

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