Voz do Nordeste' e 'Político sem Mandato', assim é Luiz Gonzaga, que se vivo, faria 100 anos 0
Assim como a imensurável associação do
consciente coletivo que liga o Nordeste brasileiro com o cenário
desolador da seca e fome, o cancioneiro imortalizado pela voz e sanfona
de Luiz Gonzaga (1912-1989) concretizou o lamento – mas também a
esperança – do sertanejo que é, antes de tudo, um forte.
Atualmente, visto tanto nas redes sociais
como nos noticiários, a escassez de água, a fome, a terra rachada e o
gado morto se deteriorando sob o sol escaldante não são meras
caricaturas do clichê que pintam do Nordeste, mostrando uma realidade
que fazia Gonzagão chorar no palco ou ter esperança que um dia tudo seja
verdejante de uma nova situação sociopolítica vigente.
“Ele era a voz do Nordeste em todos os
aspectos”, afirma o pesquisador Orlando Camboim acerca do artista que,
se vivo, faria 100 anos hoje. “Gonzaga foi um geógrafo caboclo, um
cientista matuto”, conceitua, lembrando que o pernambucano de Exu
mostrava tanto a desgraça como em ‘Asa Branca’, como o outro lado com
canções como ‘A volta da Asa Branca’.
“Ele enveredou por esta linha de protesto
em 1953”, aponta José Nobre de Medeiros, criador e diretor do Museu
Fonográfico de Luiz Gonzaga, em Campina Grande.
Entre as músicas mais emblemáticas na
lista de Nobre, ‘Vozes da seca’ encabeça por mostrar “o desprezo dos
poderes constituídos em relação ao Nordeste”.
Também lembrada por Camboim, a canção
composta a quatro mãos com José Dantas que fala que a esmola “mata de
vergonha ou vicia o cidadão” foi a primeira de protesto do músico que
causou grande repercussão nacional. “Um parlamentar falou que ‘Vozes da
seca’ valia por mais de mil discursos na tribuna do Congresso”.
“Luiz Gonzaga falava de tudo um pouco”,
conta o juiz e pesquisador Onaldo Queiroga, criador do Troféu Asa
Branca. “Sua obra vai desde a estiagem até a cheia”.
Assim como Camboim, Queiroga frisa que uma
de suas músicas preferidas do ‘Rei do Baião’ era ‘A triste partida’, de
Patativa do Assaré. Gonzaga chorava no palco quando cantava sobre a
trajetória dos retirantes.
POLÍTICO SEM MANDATO
Para Onaldo Queiroga, Gonzagão era um
“político sem mandato, que defendia o sertanejo na estiagem, realizando
shows com os amigos para angariar tributos para os irmãos nordestinos em
condições desfavoráveis, principalmente no eixo da sua região, Exu”.
O próprio músico lembrou em um depoimento
de uma cena que marcou profundamente o seu peito: quando ele viu pela
primeira vez uma distribuição de alimentos em um lugarejo chamado
Taboquinha, onde tinha propriedade, uma senhora implorava por mais
comida a quem estava organizando a partilha. “Eu tenho dez filhos e
graças a Deus já morreram três”, esbravejava a senhora. Depois daquele
momento, em que se retirou aos prantos, o ‘Velho Lua’ nunca mais teve
coragem de ver as distribuições.
“Ele já fez inúmeras campanhas de doação.
Costumo dizer que Gonzaga era um socialista na prática”, define o
pesquisador Orlando Camboim, lembrando que Luiz Gonzaga não só
alimentava a barriga do sertanejo sem esperar os políticos, mas também
contribuía na expansão cultural do seu legado, doando até a sanfona que
estava usando para quem se interessasse. Chegou a doar cerca de 300
instrumentos.
“Valeu a pena!”, chegou a declarar a
majestade do baião depois de soltar sua voz de aboio na interpretação de
‘Terra, vida e esperança’, composta por Jurandi da Feira. “Dá gosto ser
o cantor do seu povo”.
VIDA E OBRA
No calor do Sertão pernambucano, veio ao
mundo Luiz Gonzaga do Nascimento em 13 de dezembro de 1912. O segundo
dos nove filhos do casal de lavradores Januário José dos Santos e Ana
“Santana” Batista de Jesus nasceu na Fazenda Caiçara, no município de
Exu. De dia, o rígido pai Januário obrigava o filho a trabalhar a enxada
na lavoura. À noite, era o filho quem observava o pai tocando a sanfona
que consertava, animando os bailes da região.
Não demorou para o jovem Luiz tomar gosto
pela sanfona e, ele próprio, animar as festas das cercanias, apesar dos
protestos da mãe. Aos 18, enamorou-se pela filha de um coronel, para
desespero dos pais que reprovavam a relação. Triste com a
impossibilidade do romance, acabou fugindo para Crato (CE) a fim de
servir ao Exército. Depois de nove anos viajando pelo país, deu baixa e
foi para o Rio de Janeiro (RJ). Lá, dedicou-se de corpo e alma à música.
Arriscou choros, sambas e foxtrotes na zona do baixo meretrício e
chegou a se apresentar no programa de Ary Barroso, onde foi reprovado
até que assumisse as origens sertanejas e apresentasse sua canção ‘Vira e
mexe’. O sucesso lhe valeu um contrato com a gravadora Victor e, mais
na frente, um contrato com a Rádio Nacional.
Nascia aí o artista que todos nós
conhecemos. Pelas contas do Gonzagão Online, Seu Lua, como também era
conhecido, gravou 627 músicas em 266 discos, com destaque para parcerias
com Humberto Teixeira (1915-1979) e Zé Dantas (1921-1962). Depois de
alcançar a glória e ensinar o Brasil a dançar o baião, caiu no
ostracismo, quando sua sonoridade regional perdeu força para a
bossa-nova, o Tropicalismo e outros gêneros urbanos que foram tomando
conta do cenário musical brasileiro.
Voltou ao Nordeste, fazendo um circuito de
shows pelo interior até ter “resgatado” pelo filho Gonzaguinha
(1945-1991), célebre sambista carioca com quem tinha uma relação um
tanto tumultuada. A partir daí, o Rei do Baião permaneceria no trono até
sair de cena, em 1989.
DEFININDO LUIZ GONZAGA
Muitos conviveram e aprenderam com Luiz
Gonzaga não apenas através de suas músicas, mas também pelo seu bom
humor e as lições de vida deixadas pelo pernambucano.
Para Alcymar Monteiro, a convivência foi
tão íntima como a relação de pai e filho. “Fomos como aluno e professor
em um aprendizado que vale até hoje, doutrinando através da
autenticidade e não da moda”, conta. “Uma vez, em 1986, ele foi ao meu
prédio para dizer que tinha um 'presente' pra mim: 'Trouxe a Marinês pra
cantar com você'... Aí, nós gravamos juntos 'Paixão', que foi o maior
sucesso na época”.
“Gonzaga é o primeiro ídolo da infância",
confessa Gilberto Gil, em entrevista à revista Bravo! deste mês. "Eu
queria estudar um pouco de música, me meter com a música, e ele tinha
sido o grande portal. Ele se tornou o primeiro grande artista pop, ícone
pop de massas, uma espécie de Elvis Presley brasileiro da sua época.”
Já Alceu Valença define Gonzagão como um
dos grandes poetas. “Deveria ser tocado em todas as escolas e todas as
rádios do Brasil. É fundamental para a cultura brasileira”, fala,
contando que o mestre entendeu a proposta de som no início de sua
carreira, taxando que a música que Alceu fazia “soa como uma banda de
pífano elétrica”.
“Luiz Gonzaga é o inventor do Nordeste
como nós o conhecemos e idealizamos, não apenas o 'pai do baião'”,
contesta Chico César. “Gonzaga é um portal pelo qual, além dele mesmo,
passamos todos nós: Sivuca, Jackson do Pandeiro, João do Vale,
Dominguinhos, Marinês, Elba Ramalho...”
O juiz e pesquisador Onaldo Queiroga faz
uma alusão sobre o 'Velho Lua' com os nomes consagrados da literatura
como Ariano Suassuna e João Ubaldo Ribeiro, representando o Nordeste.
“Ele fez o mesmo através da música”.
José Nobre de Medeiros, criador do Museu
Fonográfico de Luiz Gonzaga, coloca o artista como o monumento da Música
Popular Brasileira, reconhecido em todo o mundo. “Com exceção da
Oceania, temos músicas de Gonzaga nos quatro continentes”.
Thiago Marques Luiz, produtor da coletânea
100 Anos de Gonzagão observa que, de uma forma geral, a música do
pernambucano se adapta a vários estilos e gerações. “Ele tem uma
linguagem popular e bem-humorada... Toca todo povo brasileiro de norte a
sul porque tem nordestino em todas as partes do Brasil”.
Alceu Valença lembra que, no último
encontro pouco antes de sua morte, o 'Rei do Baião' fez um pedido ao
conterrâneo: “Não deixe meu forrozinho morrer”.
Elba Ramalho, cantora
O maior ensinamento que Luiz Gonzaga
deixou foi o respeito pela cultura popular e nordestina. Ele se foi
fisicamente, mas sua alma permanece no artista que cultiva seu trabalho e
em todas as manifestações juninas espalhadas por todo o Nordeste".
Dominguinhos, músico
Posso dizer que essa é a maior lacuna que a
música brasileira sofreu. 80% da autenticidade musical do Nordeste se
foi com ele. A sorte é que artistas como eu, Elba Ramalho, Flávio José,
Clemilda, Rogério, Sergival e outros tantos nordestinos mantêm-se fiéis
ao legado que ele deixou".
Marcelino Freite, escritor
Minha mãe cantava 'Asa Branca' enquanto
cozinhava. Ela foi uma das pessoas que mais influenciaram a minha
literatura porque muito do que eu escrevo tem sua fala, seu jeito de
cantar e de se agoniar. E, quando estava muito triste, ela não cantava.
Nesses dias, chutava a galinha, batia panela, mandava o cachorro ir para
o diabo. (...) Mas, quando estava contente, cantava Luiz Gonzaga:
Quando oiei a terra ardendo, qual fogueira de São João... Agoniados,
meus personagens também batem panela e chutam cachorro. E, quando estão
felizes, recorrem ao lirismo do Luiz Gonzaga".
Carlos Marcelo, escritor
Todo fim de tarde, quando morava no bairro
do Miramar, em João Pessoa, saía para jogar futebol na rua e, ao
voltar, na hora da janta, escutava as rádios tocando os grandes sucessos
do momento. Entre 1974 e 1975, lembro que as rádios AMs tocavam
incessantemente duas músicas de Luiz Gonzaga: "O fole roncou" (Nelson
Valença e Luiz Gonzaga) e "Fogo pagou" (Rivaldo Serrano). Eu tinha cinco
anos e lembro que a primeira música, "O fole roncou", eu achava
explosiva, contagiante, arrebatadora".
Rosualdo Rodrigues, escritor
Eu tinha uns 9, 10 anos. Por volta,
portanto, de 1971, justamente aquele período em que Gonzaga se
encontrava esquecido pela mídia de Rio e São Paulo e focou a carreira no
Nordeste, se apresentando em shows como o que vi, em Patos. Ele cantava
em cima de um caminhão, num patrocínio de Dubom, 'o fumo de cabra
macho'. Nessa época, lembro que a voz do Rei do Baião estava muito
associada ao comercial do fumo, que passava com frequência no rádio.
Isso me faz perceber, hoje, como o carisma dele era forte, porque o
jingle era popular como se fosse uma música dele"
HOMENAGENS A GONZAGA
Nesta quinta-feira, dia em que Gonzagão
completaria 100 anos, o Museu Fonográfico de Campina Grande realizará um
evento comemorativo que envolve ato religioso, lançamentos e shows
musicais.
A partir das 19h haverá uma missa campal
no pátio do museu (rua Costa e Silva, no bairro do Cruzeiro), seguido do
lançamento oficial do selo do centenário pelos Correios.
Haverá também apresentações musicais de
vários artistas homenageando Gonzaga, como Sandra Belê, Jorge Ribas,
Oxente Groove, Marcelo Baião, Carlos Zen, Rangel Júnior, entre outros.
De acordo com o diretor José Nobre de
Medeiros, o evento conta com vários lançamentos literários e de discos
dos participantes, a exemplo de Porque o rei é imortal!, do próprio
Nobre, junto com Antonio Francisco Costa, e Luiz Gonzaga e o Rio Grande
do Norte, de Kydelmir Dantas.
NO RECIFE E EM EXU
O Governo de Pernambuco está promovendo
diversas homenagens a Gonzaga. Nesta quinta-feira serão realizados em
Exu e no Recife shows musicais com grandes nomes da MPB.
Daniel Gonzaga, Gilberto Gil, Dominguinhos
e Joquinha Gonzaga vão fazer a festa no palco Gonzagão, montado na
terra natal do 'Rei do Baião'. No palco Arsenal, na capital
pernambucana, o forró vai agitar a cidade com 'Baile do Gonzaga' com
Fagner, Alceu Valença e Targino Gondim.
Para quem não puder comparecer in loco, a
TV Brasil vai transmitir, ao vivo, a partir das 22h, as apresentações
direto do Recife, com flashes dos shows em Exu.
Para compor a cobertura multimídia em tempo real, a EBC também vai transmitir os shows pelo portal (ebc.com.br).
Os clássicos eternos
Asa Branca
Parceria de Gonzagão com Humberto Teixeira foi composta em março de 47.
A Volta da Asa Branca
Três anos depois de 'Asa Branca', Luiz Gonzaga volta ao tema da seca, desta vez com Zé Dantas.
Boiadeiro
"Vai, boiadeiro, que a noite já vem...". Os versos de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti se tornaram ícones.
Paraíba
Homenagem de Humberto Teixeira ao nosso Estado, gravada por Luís Gonzaga em 1950.
A Vida do Viajante
Com o mineiro Hervê Clodo, Gonzaga compôs
os célebres versos "Minha vida é andar por esse país / Pra ver se um dia
descanso feliz". É de 1953.
O Xote das Meninas
Parceria de Lua e Zé Dantas foi lançada em disco no dia 5 de fevereiro de 1953.
Cintura Fina
Com letra de Zé Dantas, foi lançada em 1950 no 78 RPM com 'Assum preto'.
Baião
"Eu vou mostrar pra vocês / Como se dança o baião" ensina outra parceria de Gonzaga e Teixeira, de 1946.
Pagode Russo
Forró de 1984, composto em parceria com o pernambucano João Silva.
Respeita Januário
Outra parceria HumbertoTeixeira/Luiz Gonzaga faz referência ao pai de Lua.
Sabiá
Outra parceria com Zé Dantas, de 1951, tem regravação famosa com Geraldo Azevedo.
Vem Morena
Mais parceria com Zé Dantas tem famoso dueto com Gonzaga e Fagner.
Assum Preto
Melancólica e poética parceria com Humberto Teixeira é das mais famosas.
Olha Pro Céu
Hino das quadrilhas juninas, foi composta por Luiz Gonzaga e José Fernandes em 1951.
ABC do Sertão
A "alfabetização" de Lua e Humberto Teixeira foi composta em 1953.
Riacho do Navio
Canção de Zé Dantas e Luiz Gonzaga foi lançada em 1955.
Ovo de Codorna
Lançada em 1971, canção de Severino Ramos ganhou fama com Gonzagão.
Gonzaga em números
Gonzagão gravou 627 músicas em 266 discos:
53 músicas de sua autoria
243 de sua autoria com parceiros
331 de outros autores/compositores.
125 discos de 78 RPM
79 LPs de 12"
6 LPs de 10"
41 compactos simples e duplos (33 e 45 RPM)
15 LPs de coletâneas
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